sexta-feira, abril 20, 2007

Sir William Ramsay: o ex-cético

Lucas existiu e escreveu o livro de Atos com precisão histórica e geográfica. A primeira sentença pode ser verdadeira, mas a segunda está longe de ser realidade. Isso se deve ao fato de que esse livro foi escrito no II século d.C., ou seja, bem distante dos eventos do cristianismo do século anterior que ele pretendia narrar.

O principal nome desta visão foi Ferdinand Christian Baur, teólogo da Universidade de Tübingen no século 18. Baseado na filosofia de Hegel (tese, antítese e síntese), ele desenvolveu toda uma estrutura dos primórdios do cristianismo. Para Baur, Pedro representava a ala judaica do cristianismo (tese), Paulo, a gentílica (antítese), Atos, a igreja unida (síntese), algo que só foi possível no II século. Toda essa estrutura do seu pensamento estava fundamentada na Redaktiongeschichte (a história da redação), um movimento de pensamento alemão que afirmava que o livro de Atos e também os evangelhos foram escritos mais de uma perspectiva teológica do que histórica.

Foi nesse contexto que surgiu a figura de Sir William Ramsay, um adepto de tais idéias que viajou para a Ásia Menor, as terras das viagens missionárias de Paulo, com a intenção de provar os pressupostos de Baur e da Redaktiongeschichte. Porém, todas as suas pesquisas arqueológicas mostraram o contrário. A obra de Lucas é extremamente precisa quando se refere aos costumes, lugares e personagens do I século d.C. Ramsay, ao longo de seus trabalhos, considerou o livro de Atos como autoridade em assuntos como topografia, antiguidades e sociedade da Ásia Menor e como sendo um aliado útil em escavações obscuras e difíceis.[1]

Uma de suas contribuições para a historicidade do livro foram seus estudos sobre a grande fome nos dias do imperador Cláudio (At 11:27-30). O pano de fundo do texto bíblico segundo alguns não é histórico, é improvável e nem corroborado por outras evidências.[2] Ramsay encontrou diversas fontes sugestivas em conformidade com a passagem de Atos. Diversos historiadores mencionam algo sobre a escassez de alimentos nesse período de Roma. Suetônio, historiador romano do II século, menciona uma assiduae sterelitates (fome intensa) durante o império de Cláudio (41-54 d.C.). Tácito menciona duas fomes na capital do Império e Eusébio de Cesárea fala de uma fome na Grécia e provavelmente na Ásia Menor.[3] Todas essas informações nos levam a crer que o reinado de Cláudio foi marcado por más colheitas que ocasionaram ausência de alimento em diversas partes do Império. Curiosamente, Atos 12, o capítulo seguinte, contém fatos que acontecerem em 44 d.C. (a perseguição e morte de Herodes Agripa I), ou seja, durante o período referido acima.

Hoje temos um fato bastante irônico. Eruditos do Novo Testamento negam a historicidade de Atos 4 e historiadores da antiguidade consideram as narrativas desse livro como historicamente exatas. B. H. Warmington, professor de História Antiga na Universidade de Bristol, afirmou que “quando se refere a aspectos da lei e o governo romano, os historiadores têm considerado como fontes confiáveis”. Para A. N. Sherwin-White, um dos maiores eruditos em historia romana, “a confirmação da historicidade de Atos é abundante e qualquer tentativa de nega-la é absurda”.[5]

O escritor com maior número de livros no Novo Testamento é sem dúvida alguma Paulo. Lucas, ao contrario, escreveu apenas dois livros, o evangelho que leva o seu nome e os Acta Apostolorum (Atos dos Apóstolos), mas somente estes dois ocupam mais de 30% do segundo cânon. Na realidade, algumas evidências nos levam a crer que o Evangelho e Atos são na realidade uma única obra, dividida em dois volumes.

O que motivou Lucas a escrever sua obra? Logo no prólogo do seu evangelho, ele a justifica (1:1-4). Ele diz que sua “acurada investigação” (v. 3) era destinada para Teófilo. O autor o chama de “excelentíssimo” (kratiste em grego) e ele devia ser alguém muito importante, já que esse termo é usado outras duas vezes, para Félix (23:26) e Festo, e ambos possuíam cargos extremamente importantes na política da época. Não só isso, mas o texto da obra se assemelha muito a dossiês jurídicos do I século. Provavelmente Teófilo tenha sido um advogado que estaria defendendo o apóstolo Paulo perante o júri romano.

Em favor dessa opinião, temos três detalhes importantes: 1) Em Lucas 1:3 ele usa a palavra grega akribos, minucioso em detalhes, tinha de ser algo preciso; 2) a partir de Atos 13 o foco é quase totalmente voltado para Paulo; e 3) o segundo volume da obra termina com Paulo na prisão.

Se Lucas tinha interesse em ser preciso em todos os detalhes históricos e geográficos de sua obra, por que ele não seria também com os assuntos religiosos? Se sua mensagem histórica é digna de crédito, é de se esperar o mesmo sobre as boas-novas da salvação em Cristo Jesus. Quando os "Williams Ramsays" dos tempos modernos, os céticos descrentes da Bíblia, olharem para Ela sem pressupostos negativos, quem sabe chegarão à mesma conclusão que aquele chegou.

Luiz Gustavo Assis é aluno do 4º ano de Teologia na Faculdade Adventista de Teologia, campus Engenheiro Coelho.

Referências:

1. Ramsay, William M. St. Paul: the Traveller and the Roman Citizen. Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1962. p. 8.
2. Ramsay, p. 48. Ele está citando um autor chamado Schürer, que não acreditava no relato bíblico.
3. Thompson, J. A. The Bible and Archaeology. Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1972. p. 382
4. Bornkamm, Günter. Paulo: Vida e Obra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992. p. 16.
5. Yamauchi, Edwin. Las Excavaciones y las Escrituras. Casa Bautista de Publicaciones. 1977. p. 104, 105.

quarta-feira, abril 18, 2007

Cidades fascinantes e perigosas

Na bela história bíblica de Sansão, é curioso notar que os verbos “descer” e “subir” são usados várias vezes, de modo proeminente. Por exemplo: Sansão atacou os filisteus “furiosamente, matando muitos deles. Então desceu e habitou na fenda do penhasco de Etã; e os filisteus subiram e acamparam-se contra Judá... Perguntaram-lhes os homens de Judá: Por que subistes contra nós? Responderam eles: Subimos para amarrar a Sansão, para lhe fazer a ele como ele nos fez a nós. Então três mil homens de Judá desceram... e disseram a Sansão... Descemos para te amarrar e para te entregar nas mãos dos filisteus” (Juízes 15:8-11).

Essa terminologia reflete a geografia do local. Os israelitas, inclusive a família de Sansão, moravam nas áridas montanhas de Canaã, enquanto os filisteus moravam nas verdejantes planícies da costa do Mar Mediterrâneo. Mas, para Sansão e muitos outros jovens de sua época, “descer” era não apenas mais fácil, como também muito mais atrativo. Escavações arqueológicas realizadas até agora, tanto nas montanhas quanto nas planícies, revelam que os filisteus possuíam arte e tecnologia muito mais avançadas, e viviam numa sociedade muito mais sofisticada do que os israelitas. Atrativos não faltavam para quem, como Sansão, morava numa pequena vila rural, simples e rústica. As cidades dos filisteus fremiam de excitação!

As cinco principais – Asdode, Gaza, Ascalom, Ecrom, e a maior delas, Gate (1 Samuel 6:17) – têm sido extensivamente escavadas por arqueólogos em anos recentes. Ficavam à beira-mar ou bem próximas da costa. Seus portos as mantinham abastecidas com as melhores mercadorias do mundo. Jóias de ouro e pedras preciosas, finos vasos decorados, utensílios e produtos de beleza, têm sido encontrados nas escavações. Em Ascalom, foi desenterrada a rua principal da cidade, dotada de uma grande praça, cercada por lojas e depósitos. Muito provavelmente, foi a esse lugar que Davi se referiu ao lamentar a decadência de Israel: “Não o noticieis em Gate, nem o publiqueis nos bazares de Ascalom, para que não se alegrem as filhas dos filisteus, para que não saltem de contentamento as filhas dos incircuncisos" (2 Samuel 1:20).

Nesse local, foi também encontrado um grande prédio, que incluía três salas equipadas com prensas para a produção de vinho – produto responsável por grande parte da fama e glamour da cidade e que animava suas festas (Juízes 16:25). Num prédio próximo, foram encontradas balanças de bronze com pesos de pedra. Ao lado, foi encontrado um caco de cerâmica em que se escreveu o recibo de uma carga de grãos, paga com prata.

Contudo, a riqueza e a sofisticação dos filisteus escondiam muitos perigos. Sansão deixou-se levar por eles. Entregou-se às mulheres dissolutas e às farras. E isso o arrastou para a desgraça e para a morte. Traído pela filistéia Dalila, Sansão foi preso e teve os olhos arrancados. Em seus últimos minutos de vida, quando os filisteus o fizeram de palhaço para sua diversão dentro do templo do deus Dagom, Sansão derrubou as duas colunas centrais do prédio e soterrou a todos.

Dois templos foram encontrados pelos arqueólogos em Ecrom. Ambos tinham o teto sustentado por dois pilares centrais!

Jorge Fabbro é arqueólogo e presidente da Associação de Amparo à Criança e ao Adolescente (Educriança)

segunda-feira, abril 16, 2007

As obras da lei

Entre 1947 e 1956, centenas de manuscritos antigos – incluindo cópias de quase todos os livros do Antigo Testamento – foram descobertos, dentro de grandes vasos de barro, escondidos em 11 cavernas, nas montanhas do lado oeste do Mar Morto. Ao analisar sua escrita e submetê-los a testes radiométricos, os arqueólogos ficaram pasmos ao constatar que esses documentos tinham cerca de 2 mil anos de idade! Alguns haviam sido escritos nos dias de Jesus e outros até dois séculos antes!

Quem teria escrito os famosos Manuscritos do Mar Morto? Por que teriam sido escondidos nas cavernas do remoto e inóspito Deserto da Judéia? Que segredos eles escondem? Essas perguntas continuam sendo debatidas até hoje por arqueólogos, historiadores, filólogos e teólogos. Mas algumas respostas surpreendentes já foram encontradas.

Uma dessas surpresas ocorre num manuscrito conhecido como MMT (abreviatura da expressão hebraica Miqsat Ma-ase ha-Torah = importantes obras da lei). Esse é o único escrito, fora da Bíblia, que usa a expressão “obras da lei”. Antes de sua descoberta, essa expressão só aparecia nos escritos do Apóstolo Paulo, onde severas críticas são feitas às “obras da lei”. Paulo ensina, por exemplo, que “o homem não é salvo pelas obras da lei” (Gálatas 2:16) e que “todos aqueles que são das obras da lei estão debaixo da maldição” (Gálatas 3:10).

O que Paulo queria dizer por “obras da lei”? Alguns acharam que ele estava se referindo à obediência à Lei de Deus e concluíram, muito apressadamente, que os cristãos não precisavam mais obedecer aos Dez Mandamentos. O MMT, contudo, aponta para um significado totalmente diferente.

Seis cópias fragmentárias do MMT foram descobertas nas cavernas do Mar Morto, indicando que, provavelmente, muitas outras cópias foram feitas e distribuídas. O MMT é uma carta, com mais de 130 linhas, que tenta convencer seus leitores a praticar as “importantes obras da lei” e, para nossa grata surpresa, ele faz uma lista de cerca de 20 dessas práticas religiosas, consideradas extremamente importantes pelo autor do MMT. Entre elas está: (1) não usar tecidos em que se mistura lã e linho; (2) não colocar debaixo do mesmo jugo animais de espécies diferentes; (3) não semear grãos de espécies diferentes no mesmo campo; (4) não lavar utensílios em água corrente – pois poderiam se contaminar com o que tivesse sido lavado corrente acima; etc. O MMT, evidentemente, interpreta e amplifica, de maneira extremada e distorcida, os ensinamentos do Antigo Testamento. Sua preocupação é com a preservação da pureza, em não misturar o puro com o impuro, em não incorrer no erro do “jugo desigual”. O MMT considera tais práticas como essenciais para a religião.

O apóstolo Paulo se posiciona firmemente contra esse ensinamento que, como nos mostra o MMT, parece ter sido bastante difundido naquela época. O MMT comete o erro de achar que impureza é uma questão externa, ritualística, e não moral, do íntimo do coração. Para Paulo, uma religião meramente exterior e ritualística não têm qualquer virtude, porque todos somos “justificados pela fé em Cristo, e não pelas obras da lei, porque pelas obras da lei ninguém será justificado” (Gálatas 2:16). A Lei de Deus, porém, continua sendo “santa, e o mandamento santo, justo e bom” (Romanos 7:12).

Jorge Fabbro é arqueólogo e presidente da Associação de Amparo à Criança e ao Adolescente (Educriança)

quinta-feira, abril 05, 2007

Seres humanos inflacionados

Se você estivesse fazendo uma pesquisa na biblioteca de sua universidade e encontrasse ali um jornal da época do presidente Juscelino Kubitschek, dizendo que a moeda brasileira corrente era o real, qual seria a sua reação? Evidentemente, seria de descrédito total, já que todos sabemos que a moeda naquela época era o cruzeiro.

São muitos os críticos da Bíblia em nossos dias. As razões usadas por eles para negar o relato bíblico vão desde a incapacidade de existirem eventos sobrenaturais até as supostas contradições cronológicas. Um dos argumentos mais comuns é a afirmação de que o ambiente histórico da narrativa bíblica é diferente do ambiente reconstruído pela Arqueologia. Será isso verdade?

Vejamos, por exemplo, o valor dos escravos na região do Antigo Oriente Próximo. Durante o período do Império Acádio (c. 2370-2190 a.C.), o preço de um servo ficava entre 10 a 15 siclos. Já no segundo milênio a.C., no período da antiga Babilônia (c. 1800-1700 a.C.), o valor era de 20 siclos, de acordo com o Código do rei Hamurabi e as leis da antiga cidade de Mari. As inscrições encontradas nas escavações nas cidades de Nuzi e Ugarit revelaram que por volta do XIV e XIII século a.C., a escravidão sofreu uma “inflação”, seu custo subiu para 30 ciclos. Quinhentos anos depois, no período assírio, era em torno 50 a 60 ciclos e, por fim, no período persa (IV e V séc. a.C.), algo em torno de 90 a 120 ciclos.

Quando comparamos esses valores com as informações bíblicas disponíveis, vemos um sincronismo surpreendente. Quando José foi vendido pelos irmãos, eles receberam 20 ciclos de prata (cf. Gên. 37:28), o mesmo preço do Antigo Oriente Próximo no XVIII século a.C. Na porção que descreve a aliança de Deus com Israel, uma das leis envolve o valor de um escravo, que era de 30 ciclos de prata (cf. Êxo. 21:32), refletindo assim a tradição do XIV e XIII século a.C. Finalmente, quando Menahem, rei de Israel, pagou tributo ao rei assírio Tiglate Pileser (o Pul bíblico), considerou cada israelita no valor de 50 ciclos de prata (cf. II Reis 15:20), o valor da época.

Se os personagens do Antigo Testamento foram inventados na época em que os judeus estavam em Babilônia ou no período persa, porque então o preço de José não era 90 ciclos? E por que o preço no êxodo não era o da época persa? Ao invés de tentar explicar, é mais fácil aceitar que a tradição bíblica reflete de forma precisa o ambiente histórico da época que ela narra.

Fontes:
Kenneth Kitchen. The Patriarcal Age: Myth or history? (BAR, Março-Abril. 1995, pág. 52.)
Roland De Vaux. Instituições de Israel no Antigo Testamento, págs. 109 e 110.

Luiz Gustavo Assis, aluno do 4º ano da Faculdade Adventista de Teologia, campus Engenheiro Coelho.

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